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segunda-feira, 09 de outubro de 2017 às 11:29 - por, redacao.

Opinião


Em destaque - Érica Araújo Castro "Sou uma pessoa livre de preconceitos"


Sou uma pessoa livre de preconceitos

Nem sei quantas vezes repeti essa frase. E vejo-a ainda repetida em tantos locais e vindas de tantas bocas bem intencionadas.

Porque algo que não há como negar é que sim, eu tive e sempre terei a intenção de ser alguém sem preconceito – mas isso é realmente possível?

Quem me fez refletir muito sobre o tema foram meus alunos ao longo dos anos. Eles me fizeram, inclusive, aprimorar meu discurso. Em situações muito específicas de sala aula: quando sou solicitada por eles a dar opiniões sobre assuntos diversos envolvendo temas tais como ética, religiosidade, aborto, uso de drogas – e, como não deixaria de ser, preconceito(s).

Todos esses são temas transversais da educação, o que me permite abrir a aula para isso sob demanda ou necessidade dos educandos – e jamais me arrependo. Temos conversas maravilhosas, momentos em que refletimos juntos sobre quem somos nós no mundo e de que maneira podemos contribuir para uma sociedade melhor, mais inclusiva, em que todos trabalhem pelo respeito mútuo. Um mundo em que sejamos cidadãos plenos e seres humanos melhores.

Em um belo dia, tratando do preconceito, comecei perguntando quem se achava sem ele. Quase todos levantaram os braços.

Aí comecei a fazer algumas perguntas baseadas em situações para fazê-los pensar.

“Imaginem-se passando por uma rua deserta na saída da escola. Vindo em sua direção há um grupo de jovens conversando e rindo entre si. Eles são negros e pardos, com mochilas, de bermudas, chinelos e sandálias, alguns com agasalho de capuz. Quem esconde o celular, troca de passeio, entra em uma loja ou toma quaisquer outras ações para proteger a si ou aos seus bens?”

Vários, mesmo que relutantes, levantam as mãos. Algo bem legal desses momentos é o nível de sinceridade das conversas – porque eles sabem que não vou criticar duramente comportamento algum, mas antes, visarei o raciocínio e a instrução franca.

“E se o grupo de jovens tivesse as mesmas características, fazendo as mesmas coisas, mas fosse constituído de brancos, de calça jeans, camisas esportivas e tênis? Quem tomaria as mesmas atitudes?”

“Ah, professora, mas a questão é que sabemos que os assaltantes são jovens com essa aparência”.

“Sim, sabemos que os pequenos ladrões, batedores de carteiras muitas vezes vestem-se assim e estão entre as camadas mais pobres da sociedade – porque os grandes ladrões que afetam a vida de milhares usam terno e gravata e passariam imperceptíveis, certo? Mas, fora a aparência de jovens de periferia, existia algo em seu comportamento que indicasse que eles poderiam estar procurando a quem assaltar?” – porque, observe o leitor que no meu exemplo fiz questão de colocar alguns dados: eles estavam rindo e conversando entre si (sem atitude suspeita), com mochilas na saída da escola (estudantes).

Ou seja – nada indicava que eles seriam algo além de colegiais com aparência típica de periferia, transitando, como é seu direito, pela cidade onde residem.

E a pergunta crucial desse exemplo: podemos, realmente dizer que não temos preconceito se a simples aparência de alguém nos faz suspeitar de que seja um assaltante? Porque é sempre bom lembrar – mesmo que pequenos ladrões que infestam jornais sejam jovens de periferia eles não representam parcela significativa da mesma, constituída em sua grande maioria de gente que estuda, trabalha e tenta levar uma vida digna apesar de socialmente massacrada.

Outra situação que costumo propor.

““Chuta que é macumba” é uma expressão bem popular. O que ela significa? Tudo bem utilizá-la em nosso dia a dia querendo indicar que algo é feio, mal feito, estranho, de origem má”?

Incrível quantos “sim” aparecem, sem sequer um segundo pensamento. Tomamos tempo em analisar a expressão, seus significados, sua relação com cultos afro-brasileiros (mesmo que equivocada), o comportamento das pessoas frente às entregas e despachos dessas religiões – literalmente chutar ou desrespeitar de alguma maneira. Analisamos se estaria tudo bem chutar a santa católica ou a bíblia. Se não está, qual o motivo de poder-se chutar a “macumba”, então? Também não é algo pertencente a um culto, tanto quanto uma imagem católica, a Bíblia ou o Alcorão?

E com essas e outras situações hipotéticas vamos construindo novas ideias e desconstruindo pensamentos ultrapassados – neles e em mim mesma – com certa dificuldade prática inclusive. Como disse uma minha aluna alguns dias após nossa conversa sobre preconceito: é muito difícil passar perto de um adolescente com a aparência de periférico, que esteja apenas transitando sozinho ou em grupo, sem qualquer atitude suspeita, e não esconder o celular. O hábito está arraigado demais – mas pela transformação em seu olhar, observamos que não é de mudança impossível.

Pensando bem, mesmo o fato de ter que sempre ressaltar o “sem nenhuma atitude suspeita” quando se fala de um jovem periférico passando já demonstra uma boa cota de preconceito. Porque, pensemos, se a atitude é suspeita, devemos nos proteger de qualquer um – independentemente de sua aparência.

Não importa se jovens brancos, de roupas de marca e tênis caros, passam na rua. Se algo nas ações, no olhar, em sua movimentação levanta sua suspeição, esconda-se e guarde seus pertences. Afinal, jovens “insuspeitos” já queimaram índios, mendigos, espancaram empregada doméstica por pensarem se tratar de prostituta (!!!), já roubaram, traficaram – praticaram delitos e crimes de todos os espectros do Código Penal.

Mas ninguém se oculta por ver um grupo com essas características apenas passando.

Como me disse um tio policial, certa vez, todos, inclusive a polícia, temos que aprender a avaliar atitudes – não cor da pele, origem, roupas.

E assim, de pensamento em pensamento, de situação em situação, chegamos à conclusão de que dizer que somos pessoas livres de preconceitos expressa apenas um desejo, uma idealização – não uma verdade, não importa quem a diga.

Que mais real seria dizer: sou uma pessoa que se esforça em reconhecer e corrigir seus preconceitos. Sou uma pessoa que se esforça em ser livre de preconceitos.

E que dizer isso é exatamente o oposto de querer ser ou gostar de ser preconceituoso – é o tão necessário reconhecer, enxergar onde estamos enquanto seres humanos buscando a evolução pessoal justamente para corrigirmos onde erramos. Como minha aluna adolescente e branca de classe média que tenta não enxergar a juventude periférica como ameaçadora simplesmente por estar andando na rua.

Enquanto se faz isso, não corremos o risco da estagnação presente na crença impossível de que não se possui nenhum preconceito impedindo quaisquer mudanças necessárias e benéficas para si e para o outro.