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Érica Araújo / Articulista

sexta-feira, 04 de agosto de 2017 às 17:30 - por, Erica Castro.

A barbárie jamais cedeu completamente à civilização


Jornal ESTADOATUAL


Fomos surpreendidos essa semana pela escalada da violência no estado do Espírito Santo, motivada pela greve da polícia.
A frase parece perfeita – mas traz um grave equívoco: não foi a paralização da polícia em busca de melhores condições de trabalho e salário que fez com que as pessoas, de súbito, passassem a cometer crimes amedrontando e aprisionando a população em suas casas.

Foi o impulso violento e animalesco, que alguns classificam como sendo a pulsão de morte, que em determinadas situações, especialmente as que envolvem turbas, desperta a capacidade mal adormecida de violência irrestrita inerente ao ser humano.

Inerente, sim, porque confesso na atual situação do estado, inclusive da capital Vitória, o que mais me assusta não é o fato de criminosos estarem à solta cometendo crimes. A redundância proposital demonstra que não há novidade nessa constatação – não é surpreendente que pessoas que se dedicam a essas atividades sintam-se mais livres para aumentar sua prática na ausência do força repressora.

O que me deixa estarrecida em relação ao quão violentos ainda somos enquanto espécie é o fato de que dados os números da selvageria, que inclui mais de cinquenta assassinatos e saques a lojas, não são apenas os criminosos que se esbaldam na ausência da polícia que, bem ou mal, existe para coibir tais atos.

Não. Pessoas comuns aproveitam-se da sensação de fazerem parte de uma coletividade violenta, a turba, e cometem atos que não fariam se o policiamento estivesse ativo.

Lembremo-nos de duas situações emblemáticas, ambas no ano de 2014 – o assassinato de Fabiane Maria de Jesus, no Guarujá, por uma turba enfurecida motivada por boatos de que ela seria uma sequestradora de crianças com fins de usá-las em rituais de magia de baixa vibração; e os saques no Recife durante a greve da polícia militar.

Recordo-me de pessoas arrependidas indo às lojas no dia seguinte devolvendo os itens que haviam roubado levados pelo pulso apenas parcialmente escondido pela civilização. Sim, considerando os milhares de anos de evolução, a civilização e seus conceitos moralizantes de respeito e boa convivência são apenas uma pequena mancha em nossa história, ainda não completamente absorvida por todos – quiçá por ninguém.

Exemplos não nos faltam: os estupros nas noites dentro dos estádios onde a população se protegia dos estragos causados pelo furacão Katrina, em Nova Orleans; as mortes cruéis divulgadas por grupos terroristas radicais e a crueldade perpetrada por eles contra populações desprotegidas e acuadas; o Holocausto judeu; o Holocausto brasileiro no hospital psiquiátrico de Barbacena em que cerca de 60.000 pessoas, com doenças psico-neurológicas ou não, foram mortas pela fome e maus tratos; os ataques e assassinatos de indígenas no centro-oeste brasileiro, incluindo relatos de crianças de colo queimadas vivas – a lista seguiria interminável.

Todos esses exemplos assustadores de até onde pode ir o lobo do homem quando, por algum motivo, seu superego (suas barreiras morais) é deixado de lado enquanto o Id (impulsos primordiais) descarrega seus desejos de aniquilação do outro pela violência, esfregam na nossa cara o quão pouco “civilizados” ainda somos, já que em tais momentos nos dividimos entre predadores e caça, tal qual quando ainda morávamos nas cavernas. Há os que liberam seus instintos de selvageria e atacam, há os que se escondem amedrontados e temendo por si e pelos seus expressando o mais instintivo de nossos impulsos: o de preservação da vida.

É impressionante como atos assim se repetem perpetrados por cidadãos que jamais os cogitariam fazer em situações em que a sociedade, de alguma forma, está assentada, sob controle. Eles apenas o fazem quando sentem-se justificados por alguma crença, ideologia, seja política ou religiosa – ou pelo movimento de turba, esse ser social irracional submetido aos impulsos barbáricos, no caso do estado do Espírito Santo, despertado pela ausência de repressão.

Assim, o que fica claro é que não foi a paralização da polícia militar que levou à violência irrestrita. As pessoas que assim estão agindo, tenha a certeza, agiriam da mesma forma se houvesse um grande desastre natural, um blackout prolongado ou outra situação de instabilidade social grave.

Não é a ausência da força repressora que faz com que as pessoas ajam assim – é a barbárie, essa nossa companheira evolutiva, ainda não completamente civilizada, mas apenas oculta por um arremedo de civilização que engatinha e é, por isso mesmo, extremamente frágil, podendo ser dilacerada a qualquer momento e sob qualquer pretexto que alimente o Id libertando-o das mãos do Superego.

Freud explica. Temamos.

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