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Érica Araújo / Articulista

quarta-feira, 09 de agosto de 2017 às 10:53 - por, Erica Castro.

Mães negras e filhos brancos


Jornal ESTADOATUAL


Nesses últimos dias temos acompanhado o relato de uma mãe que teria passado por um enorme constrangimento por ser negra e ter uma filha “branca”, que teria sofrido uma tentativa de sequestro. Fundamentados pelo fato de a aparência de ambas ser muito díspar, populares teriam interferido e quase permitido que a sequestradora, que teria apresentado uma certidão de nascimento falsa, levasse a bebê de pouco mais de um aninho.

Passados alguns dias, há quem diga que a história não aconteceu de fato – há quem diga que aconteceu, sim, e estaria sendo abafada. Impossível, nesse momento determinar onde estaria a verdade, papel da polícia.

Mas o que eu, pessoalmente, sei sobre mães negras de crianças “brancas”?

Em primeiro lugar, é preciso explicar as aspas. Na minha concepção baseada em definições pessoais, sociológicas e biológicas, é impossível que um filho de uma pessoa negra seja branca visto que os brancos são aqueles que pertencem à descendência de origem europeia, como os brasileiros encontrados em várias áreas do sul do país. Eu mesma descendo de uma família de um lado majoritariamente branca, com minha avó de olhos claros – e de outro, de uma família de negros e, como são chamados localmente, “negro aço”, que são aquelas de tez mais clara, mas que possuem cabelos crespos.

Não me classifico e nem me considero puramente branca e nem puramente negra – porque sob minha perspectiva pessoal, nem o negro “suja” o branco da minha herança, nem o branco “limpa” o negro da minha hereditariedade. Nenhum lado de minha família é menos do que o outro, sendo eu, portanto a ponta de um triângulo multicolor (já que há ainda, a ascendência indígena, mais distante, da tribo Maxacali). Costumo me identificar como parda, já que mesmo o dicionário diz que pardos são os de cor intermediária entre o preto e o branco, quase escuro – o que antigamente se chamava de mulato, palavra cujo uso vem diminuindo em virtude de relacionar pessoas a animais, o que é inapropriado. (Dicionário Priberam).

Para mim “pureza” de cor ou etnia sempre foi algo desimportante, contraditório em um país miscigenado, e absolutamente distante da minha realidade mista, na qual todos os meus familiares prévios, negros, brancos ou indígenas, contribuíram para formar quem sou por fora e por dentro.

Assim, na minha família existem mulheres negras mães de pessoas negras, outras mães de pessoas pardas, e mães de pessoas que outros avaliariam como “brancos”. Uma delas, uma prima, era a que apresentava maior diferença fenotípica de seu filho. Ela de tez bem escura – e ele bem clarinho, mais claro que eu, que já tenho uma cor que muitos insistem em descrever como “branca”.

E da boca dessa prima ouvi, não raras vezes, relatos de quando afirmaram, sem pudor, que  seu filho não poderia ser seu filho. Houve uma vez em que ela o levou ao parquinho. Nesse dia ele estava particularmente levado ao ponto de, em determinado momento, ela o pegar pelo braço firmemente e chamar sua atenção com muita seriedade. Imediatamente, aproximou-se dela uma mulher e lhe disse “Eu conheço a mãe dele, viu. Vou contar para ela o que você está fazendo!”.

Ela sempre relembrava esse caso isso rindo de raiva e dizendo que na hora não teve nem frieza para responder. Que simplesmente parou olhando para a tal senhora de maneira embasbacada sem conseguir articular resposta.

E essa foi apenas uma história de tantas que ouvi de alguém que conta com minha credibilidade.

Ou seja, para mim, independe de o caso acontecido em Perdões – MG ser real ou “fanfic”. Isso é para ser apurado pela polícia com reparações por parte dos responsáveis à parte lesada, seja por terem contribuído para um quase sequestro; seja pelo registro de uma ocorrência falsa junto à polícia.

O que me importa mesmo é saber que o brasileiro se conhece e se reconhece tão pouco que intelectualmente entende que pertencemos a um povo miscigenado – mas na prática é incapaz de entender a realidade disso, como por exemplo, o fato de que uma mãe negra, pode sim, ter um filho “branco”. Da mesma maneira que a mãe branca terá um filho negro/pardo, dependendo de sua ascendência e da ascendência de seu par.

Chego a me perguntar as razões da desconexão com uma realidade tão palpável que se descortina frente a nossos olhos, sem freio, em nossas tantas famílias de tantas cores.

No caso da minha prima – e os tantos por aí relatados – a questão de essa mulher negra ser sempre enxergada como a babá também fala muito de nós e de nossos preconceitos. Por que ela não pode ser a tia, a professora, a madrinha, a prima, a amiga da família – a mãe? Por que a preta sempre tem que ser a cuidadora do branco?

Enquanto não pararmos para internalizar o fato de que 51% de nossa população é negra – e dentro dessa descrição legal estão inclusos todos aqueles que se definem como negros, pardos ou definição análoga – e passarmos a ver esse dado caminhando nas ruas, nos atendendo nas lojas e consultórios médicos,sendo o profissional que nos atende em diversas áreas, sendo professores e escritores (como eu mesma), sendo nossos vizinhos, nossos amigos, enfim, existindo – ainda continuaremos na ilusão enganadora de que vivemos em uma sociedade branca.

Vamos acordar para a vida?

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