Busca

Erica/Articulista

quarta-feira, 09 de agosto de 2017 às 10:30 - por, Erica Castro.

Mulher branca pode ou não pode usar turbante?


Jornal ESTADOATUAL


Há cerca de três décadas vemos o dito movimento negro – que não tem homogeneidade, mas antes tratam-se de grupos, não raro organizados pela sociedade civil – atuando para garantir a aquisição e garantia de direitos para a população negra no Brasil.

A exemplo do feminismo, não existe uma única “cartilha” sobre a qual todos devem rezar – mas considera-se fundamental para esses agrupamentos que defendam o pensamento de que a raiz africana da cultura brasileira deve ser valorizada em suas várias formas, desde a dança, luta, comida, estética etc.

Assim, ao longo das últimas décadas, vimos como resultado, devido ao esforço contínuo de milhares de pessoas, significativa mudança na forma como o negro é encarado na sociedade.

Mesmo que ainda se esteja longe da igualdade de direitos e deveres, foi um avanço – especialmente considerando-se que, segundo dados do IBGE, 51% da população brasileira é constituída de negros que, de acordo com a lei 12.228/2010, inciso IV, englobam aqueles que se autodeclaram como pretos e pardos ou designação análoga.

Ainda necessitamos muito, enquanto sociedade, da ação desses movimentos. A grande prova disso é o racismo velado que faz com que nossa população tenha ódio de si mesma. Sim, porque é ilusão imaginar que 49% da população que se identifica como branca é a responsável por submeter os outros 51% a situações de inferioridade social.

No Brasil verifica-se um fenômeno intrigante: mesmo pessoas dentre a população reconhecida como negra pelo IBGE demonstram preconceito com os que possuem pele mais escura que a sua, sendo que a discriminação, não raro, segue um dégradé perverso em que o mais claro cerceia os direitos dos de tons de pele mais escura em um grave complexo de ódio a si mesmo.

Isso em uma sociedade não branca, e tanto mais miscigenada quanto mais para o norte – seja essa miscigenação fruto de misturas branco-negro, quanto branco-indígena ou negro-indígena.

Ou seja, somos uma sociedade que não se reconhece no espelho e não vê em si mesma sua história, sua ascendência, sua origem.

O dito movimento negro tem conseguido mudanças que se podem ver na TV, por exemplo – existem hoje mais protagonistas negros, mais modelos negras, mais negros em comerciais – o que dá, especialmente às crianças, o tal padrão de representatividade. Ou seja, mostra-lhes que elas existem como seres sociais, fazem com que reconheçam em si e em seus traços uma beleza que antes era, no máximo, permitida no carnaval em uma sexualidade exótica, explícita e disponível.
Hoje, não. Há princesas negras e crespas. Heróis fictícios ou reais de narizes largos e pele retinta.

Tal fato muda o valor estético social, mesmo que ainda esteja longe de representar a presença real do negro na população. Hoje, uma roupa que era carnavalizada por ter padrões que remetem à África, um penteado que pertencia à “nega maluca”, o turbante com amarrações africanizadas, os fios de contas e búzios das religiões afro-brasileiras deixaram de ser o exótico e pouco a pouco vão ganhando as ruas exibidos por pessoas de peles de todas as cores.

E isso tem gerado uma grande discussão importada do movimento negro norte-americano que diz que acessórios e artigos frutos da cultura negra devem ser usados apenas por negros. E de preferência os de pele mais escura.

Entretanto, esquecem-se alguns que os Estados Unidos são um país onde a miscigenação é artigo raro sendo uma sociedade dividida entre negros e brancos. A mistura que existe aqui é sequer compreendida lá.

Tendo em vista esses fatos e a luta do movimento negro aqui, pergunto: faz algum sentido lutar por anos para que a visão sobre a estética negra seja transformada sendo vista como bela para quando tal começar a acontecer, tentar impedir indivíduos de fazerem uso dela devido ao tom de sua pele?

Não creio que faça.

Ao mesmo tempo, não está certo o fato de que a médica negra Thatiane Santos da Silva seja aconselhada a mudar seus dreads porque os mesmos não estariam no “padrão” a que os pacientes eram acostumados em uma flagrante demonstração de preconceito. Enquanto isso, o mesmo penteado, visto em pessoas de tons de pele mais claros ou brancos, seja considerado “belo” ou “descolado”.

Por isso é importante que o caso da médica – e de todos os que tiverem coragem para a denúncia – devem tornar-se emblemáticos, serem divulgados, causar indignação: é o que abre caminho para que o próximo empregador que se sentir tentado a fazer o mesmo trema, nem que seja pelo medo do linchamento público na internet, até que um negro usando um penteado típico seja visto com os mesmos olhos que alguém de tez clara.

Isso é transformação. Mas que infelizmente não acontece rapidamente, nem sem luta e sem aqueles dispostos a darem um rosto à briga, à exemplo do que Martin Luther King fez com Rosa Parks.

Assim, continuo perguntando: o local dessa discussão é na individualidade, em relação ao que o cidadão usa dentro de sua subjetividade, ou no comportamento coletivo, dentro do que é passado como valor, a exemplo da educação, da indústria da moda, da propaganda etc. para toda a sociedade?

A mim parece bem óbvia a resposta: deveria ser indiferente o que o indivíduo usa enquanto deveria ser absolutamente relevante o que se ensina ou se vende como valor cultural. A filósofa Djamilla Ribeiro tem excelente artigo sobre isso intitulado “Apropriação Cultural é um Problema do Sistema, não de Indivíduos”.

Deveria importar muito mais o fato referenciarem a África na São Paulo Fashion Week (2006) com menos de dez por cento de modelos negras na equipe e dez anos depois acontecer o Baile da Vogue (2016) em suposta homenagem ao mesmo continente, mas de maneira estereotipada e, por vezes, bizarra – do que se uma pessoa de pele clara ou branca usa turbante com amarrações africanistas.

Deveria importar muito mais o fato de que existe uma minoria negra protagonizando novelas, filmes, produções musicais – do que uma loira de dreads.

Afinal, o médico negro na novela é um dos componentes que vai naturalizar a visão do negro na medicina. O bailarino negro, nas artes. O príncipe negro, nos contos de fadas. O modelo negro posando não apenas em trabalhos que remetem à África, na estética física. A cultura e as artes moldam pensamentos, inclusive sobre valores estéticos.

Falar insistentemente e didaticamente, na escola e fora dela, do preconceito enfrentado diariamente pela população negra também força a todos aqueles que se recusam a vê-lo a, finalmente, reconhecê-lo – nem que seja pelo temor da lei e das punições nela previstas.

Então, não se engane. Na medida em que nossa identidade nacional for fortalecida com suas raízes africanas e indígenas ocupando o lugar de destaque que lhes cabem em nossa cultura, brancos e não brancos de turbante, dreads, trançados africanizados, tatuagens com motivos indígenas, imitando algo que viram na propaganda e acharam bonito por estarem mais e mais presentes na mídia, nas artes, na academia, na ciência etc., aumentarão exponencialmente.

Mas não será justamente essa a consequência de sabermos quem somos e de onde viemos? Não será essa justamente a consequência de se reconhecer o negro e tudo o que ele significa como belo, natural, normal – ao contrário de feio/inferior, exótico, anormal?