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Uma crônica, um poema

segunda-feira, 20 de abril de 2020 às 09:29 - por, redacao.

Quarentena


Por: Jornalista Everlan Stutz


Na quarentena tenho dedicado boa parte do tempo à poesia, escrevi alguns poemas sobre isolamento social, incomunicabilidade e empatia. Percebi a gravidade da Covid-19 quando assisti pela internet caminhões do exército italiano carregando corpos para serem cremados. Nessa imersão na linguagem poética, talvez eu tenha demorado para perceber o cenário caótico dessa pretensa aldeia global. É necessário confessar, sem eufemismos cotidianos, que já vivíamos em bolhas on-lines, com a virtualidade habitual que fascina o homo-web e suas tecnologias reinventadas para aumentar o consumo desenfreado e outros pecados capitais. A palavra capital tem sua origem no latim e significa ‘relativo à cabeça’, daí a conotação à ‘principal, o que manda’. Ainda observamos a significação dessa palavra quando chamamos de capital a cidade sede do governo ou quando citamos os ‘sete pecados capitais’. No período renascentista, os banqueiros italianos se apropriaram do termo ‘capitale’ para designar a parte principal de um investimento. No século 19, o sentido do vocábulo capital foi ampliado, passou a significar ‘propriedade, riqueza, meio de produção’ em oposição ao ‘trabalho’. Não deve ser à toa que ‘os pecados capitais’ e o capitalismo estabelecem raízes etimológicas, históricas e ideológicas. O capital é o que manda e a ganância obedece. E diante da pandemia, a vida humana virou estatística ou fake news estampadas nos grupos de ‘zap, zap’.

Todos nós estamos submetidos a superdoses de informações que nos causam medo, ansiedade e que, em casos mais graves, levam à depressão, uma doença silenciosa que afeta milhões no planeta e que pode culminar em fins trágicos como o suicídio, essa palavra-tabu, mais um vírus de ‘capital importância’ na era da comunicação distanciada. Apesar dos avanços tecnológicos, da robótica, da inteligência artificial, a pandemia comprovou a ineficácia desse arcabouço tecnicista e pouco humanitário. A quarentena tem sido útil para repensar objetivos e refletir sobre a vida em sociedade. A aprendizagem anda de mãos dadas com a história sangrenta das civilizações para redesenhar novas possibilidades, para reelaborar conexões a partir da condição humana, tão vulnerável e transitória. Já estávamos em quarentena e não tínhamos consciência disso, isolados na comodidade de nossas inúmeras virtualidades, distantes e raramente off-line para conversarmos com a franqueza necessária de quem ouve e quer ser ouvido, para olhar e tocar as pessoas com carinho e tratá-las com respeito e dignidade. Quantos abraços trocávamos por lives? Quantas palavras foram sufocadas por emoji? Quanta boa prosa foi substituída por bate-papo digitado? Estávamos intocáveis e poucos compravam álcool em gel.  Esse confinamento social é fato passado e sequer percebíamos ou apenas ignorávamos entre likesselfies e stories.  Éramos imbatíveis a distância, fortalezas fakes que bloqueiam subjetividades. O parecer é mais confortável, raso. O ser é o aprofundamento de nossas inquietações e dúvidas. É na profundeza do breu que necessitamos de recolhimento, de introspecção para tentarmos alcançar ou resgatar nosso brio de viver. É na escuridão que enxergamos a luz. E a luz é a potência da vida. Então continuemos com essas reflexões de vagalumes, a semear luz entre palavras e inferências.

No século 21, a conjunção entre ciência, tecnologia e o capitalismo sem limites acarretou males dolorosos e irreversíveis à sociedade do aqui e agora.  A tecnologia avançada nos deu a sensação de sermos invencíveis e fomos pretensiosamente consagrados como os dominadores da técnica, da comunicação instantânea, das coisas efêmeras, do modismo artificial das imagens, dos memes. Havia uma visão entre especialistas de que faltava um símbolo para sinalizar o final do século 20, um século marcado pelo avanço tecnológico, na qual as duas guerras mundiais serviram para aumentar nossos artefatos bélicos e digitais como a criação da rede mundial de computadores na guerra fria. O homem reinventa novas saídas nos escombros e na escuridão da lógica capitalista.  A Covid-19 desencadeou uma revisão de valores provocada por uma crise epidemiológica, um colapso sanitário sem precedentes que afeta drasticamente setores da economia, da saúde mental e, com isso, a constatação de que a vida é mais importante que acumular bens ou consumir desenfreadamente. Isso estampou a crueldade seletiva do capitalismo, reforçou a função essencial da ciência e da imprensa para garantir informação apurada e confiável. A Covid-19 mostrou a necessidade de mais investimentos em pesquisas, além de escancarar a crise da saúde pública e as mazelas que profissionais e pacientes sofrem com o descaso na gestão de hospitais, com laboratórios sucateados e o mais agravante: a falta de leitos em situações emergenciais.   

A poesia é meu refúgio, uma amiga inseparável, posso abraçá-la sem máscara de proteção respiratória, sem álcool em gel. Poesia é filosofia em cápsulas. E necessitamos de cápsulas de poesia para tentar entender, digerir e ressignificar valores com evidências factuais de alteridade e senso de coletividade. Em tempos pandêmicos, o amor ao conhecimento poderá nos salvar e o amor ao próximo será a maior prova de autoamor. De uma prolongada quarentena, nasce um poema, uma reflexão de pequenos vagalumes que resistem à escuridão de um inimigo invisível, letal e desconhecido.  A crônica virou verso com a poesia do cotidiano. Os gêneros textuais devem ou são naturalmente híbridos. O universo é diverso e a vida é a maior preciosidade da Terra.

Quarentena

a pandemia nos tirou o tato, o contato

é fato que ficamos mais solitários

então sejamos solidários

nesse confinamento decretado

e repudiado pela ganância insana de quem banaliza a vida humana

um vírus paralisou o mundo

pra escandalizar de vez a nossa pequenez

pra revelar a estupidez patética que afeta os afetos

a pandemia abalou a economia

e nosso dever é viralizar o amor

nesse isolamento cinza, incolor

Éverlan Stutz

jornalista, professor, ator, poeta e compositor nas horas vagas

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Belo Horizonte, bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Ouro Preto, especialista em Gestão do Património Cultural pela PUC Minas, Pós-graduado em Comunicação Social e  Novas Tecnologias.